O estudo “Percepção pública da ciência” (CGEE,2019) destaca, entre outros aspectos importantes, o nível de desconhecimento da ciência brasileira. Segundo a pesquisa, 90% dos Brasileiros não se lembram ou sabem apontar um cientista do país, assim como 88% não se lembram ou sabem apontar uma instituição do setor científico brasileiro. A pesquisa constatou que nem mesmo as universidades, principal centro de produção de conhecimento científico, foram citadas. O percentual de pessoas que conseguem lembrar o nome de alguma instituição de pesquisa científica ou de algum cientista do país está entre os menores da América Latina. Estes resultados destacam a importância e urgência da divulgação científica no país, de forma ampla a abranger instituições e cientistas. 

Esta perspectiva parece estar sendo transformada durante a pandemia de coronavirus, onde especialistas e instituições seguem ganhando grande visibilidade em todos os espaços de divulgação científica, configurando uma grande oportunidade, mas há pontos a observar.

Acadêmicos como Paulo Freire, Howard S. Becker, e Everett Hughes utilizam uma linguagem clara e coloquial, evitando expressões rebuscadas para expressarem, tornando sua comunicação “palatável” ao cidadão comum, porem o formato usual da academia é exatamente o oposto. A impessoalidade da comunicação científica entre seus pares, o uso de expressões rebuscadas, necessárias a melhor síntese e definição do que se quer expor, e a necessidade de aprofundar em temas relacionados, com o objetivo de estruturar as conclusões a serem apresentadas, se mostram como uma ciência impenetrável e muitas vezes enfadonha ao cidadão comum. 

Uma enorme fresta está se abrindo, uma vez que a academia ainda segue seu ritmo tradicional, produzindo para seus pares, em longos ciclos, para então terem suas pesquisas divulgadas, muitas vezes de forma enviesada ou distorcida, por jornalistas buscando respostas à questões do cotidiano, ou ainda “blogueiros” e “youtubers” explorando temas científicos, na busca de visibilidade. A questão é que este processo de divulgação científica colabora para a construção da pseudociência, massificando um conhecimento igualmente enviesado, distorcido e muitas vezes equivocado, impreciso e descontextualizado. 

Sandra Peter e Dirk Hovorka (2019) destacam o tamanho desta brecha temporal entre a velocidade com que as tecnologias e sistemas humanos evoluem, enquanto as pesquisa não acompanham, levando muitas vezes os pesquisadores a realizarem “autópsias de pesquisa”.

À medida que as tecnologias e os sistemas humanos se tornam cada vez mais impactantes e difundidos, os resultados inesperados muitas vezes levam os pesquisadores a realizar “autópsias de pesquisa” para determinar o que deu errado. Apesar da preocupação em torno das tecnologias disruptivas e da crescente complexidade, interdependência e volatilidade dos ambientes de negócios, os acadêmicos permaneceram orientados a pesquisar o aqui-e-agora e assumir uma extrapolação do presente para o futuro.

(PETER, Sandra; HOVORKA, Dirk S. 2019, Tradução Nossa)

Os autores defendem a proposta de utilizar técnicas de futurologia na ciência, projetando muitas vezes cenários futuros em suas pesquisas, de modo a não parecerem meras autópsias de pesquisa, mesmo correndo o risco de errarem em suas projeções (idem). 

O editorial da revista NATURE (2020) com o título “Coronavirus misinformation needs engagement” expõe o mecanismo da desinformação em torno da pandemia de coronavírus, e destaca a importância do engajamento da sociedade, políticos, veículos de imprensa, plataformas de redes sociais e da comunidade científica como resposta imediata a esta desinformação, cuja consequência desastrosa é a de estar ceifando vidas.  

Estas questões fazem da divulgação cientifica não apenas uma área de pesquisa, que integra a ciência em geral com a comunicação, mas sem sombra de dúvida, dado o contexto atual das fake news e pseudociência, em uma área de pesquisa necessária a própria sobrevivência da ciência

Pode parecer uma conclusão exagerada, mas a dissertação, que levou a esse projeto de divulgação científica tem em seu nome e conteúdo a expressão “produção de crenças e construção da realidade”.

Os tempos são outros, vivemos o mundo VUCA, onde tudo é volátil, incerto, complexo e principalmente ambíguo, demonstrando a necessidade de encurtar os ciclos de produção e divulgação da ciência, como temos visto neste momento de emergência da pandemia de coronavírus. Adequações a esta realidade passam pela compreensão dos mecanismos utilizados pela desinformação, que contam com sofisticadas estratégias de marketing digital e aproveitamento oportuno dos vieses cognitivos, comuns a todo ser humano. 

O editorial da revista Nature Materials (2012) com o título “The Scientific Marketplace”, afirmava que só nos Estados Unidos, 800 mil artigos foram publicados anualmente, aumentando significativamente a disputa por atenção e financiamento, e sugere a utilização de conceitos de marketing para fazer a diferença nessa disputa. 

Segundo Ronaldo Ferreira Araujo (2018), quando o acesso aberto é combinado com o uso de mídias sociais, a influência dos artigos de pesquisa transcende o silo da academia, e passa a repercutir dentro e fora dele, ampliando a visibilidade dentro destes dois espaços, e construindo o interesse público pela ciência. O potencial da junção entre o acesso aberto e mídias sociais colocam o potencial do digital a serviço da ciência, a conectando com o mundo exterior. 

O mundo exterior é plural, Craig Cormick (2019) defende que a comunicação científica deva possuir estratégias para atingir todos os tipos de diferentes pessoas, e não apenas as que são mais fáceis e predispostas a serem impactadas. Cormick constata ainda que a comunicação científica enfrenta a desinformação, ignorância, negacionismo, conveniência política e tantos outros problemas. 

A comunicação científica pode configurar uma estratégia mais ampla para endereçar as questões levantadas por Cormick, segundo Jorge Wagensberg (2005) existem quatro áreas sociais com respeito à ciência:

Existem quatro áreas sociais com respeito à ciência: 1) a área que visualiza e cria a ciência é a comunidade científica (universidades, institutos de pesquisa, pesquisa em companhias, amadores..); 2) a área social que utiliza a ciência é o setor de produção (indústria, companhias, serviços…); 3) a área que paga, se beneficia e que também pode sofrer com a ciência, é a própria sociedade (o cidadão comum); e finalmente a área que gerencia a ciência é a administração (políticos).

(WAGENSBERG, 2005,p.5)
Fonte – WAGENSBERG (2005, p.5), Elaboração própria

Ao colocarmos as quatro áreas da sociedade com relação a ciência em uma matriz de forças semelhante ao modelo da Matriz de Porter, teremos o gráfico acima, onde as forças estão representadas de forma simplificada para  facilitar o que se quer demonstrar. 

Em primeiro, na posição central temos a Comunidade Científica, área da sociedade que como descrita por Wagensberg, visualiza e cria ciência, ou seja, produz a ciência em universidades e institutos de pesquisa, e estão sujeitas a disputas como descritas anteriormente, tanto de visibilidade, como de financiamento, e ainda teria uma disputa pelos que produzem ciência de forma corporativa e amadora. A comunidade científica em si encerra um complexo sistema que incorpora todas as qualidades e defeitos citados (WAGENSBERG, 2005). 

A esquerda temos o Setor de produção, área privada que financia, se beneficia e também pode se prejudicar com a ciência. A força do setor de produção está orientada em direção à comunidade científica, justamente por conta de sua relação, uma vez que ao prover financiamento privado, ele determina as agendas que devem ser desenvolvidas em acordo com seus interesses, enquanto tenta desestimular agendas que lhe são prejudiciais. O contrapeso nesta relação está no financiamento público e na liberdade de pesquisa, provido pelo setor que Wagensberg chama de Político, que é a área que gerência e administra a ciência, assim como produz, aplica e regula políticas públicas ligadas ao setor (idem). 

Como receptor e beneficiário desta matriz de forças temos o Cidadão Comum, que usufrui ou se prejudica da ciência, tendo a boa comunicação científica como um catalizador potencializando os benefícios e reduzindo os malefícios desta produção científica (idem). 

O que se quer demonstrar, e que uma boa estratégia de comunicação científica deve possuir táticas específicas para obter os resultados desejados de cada um dos elementos da matriz. Apesar de um plano estratégico desta envergadura ser viável apenas a partir de instituições de pesquisa, cabe ao divulgador científico ter em mente sua existência, e muitas vezes ponderar suas estratégias e táticas de divulgação científica para melhor benefício do resultado, sem produzir desequilíbrios sensíveis neste sistema.  

Aprofundando no ciclo da produção e comunicação científica, Carlos Vogt e Ana Paula Morales (2017) descrevem a espiral da cultura científica, em quatro quadrantes que delimitam os diferentes públicos da produção e divulgação científica. Podemos imaginar que a espiral é um retrato detalhado da “comunidade científica” dentro da matriz de força da ciência e comunicação científica anteriormente descrita. 

O primeiro ponto a observar na figura a seguir, a espiral da cultura científica, é a característica em espiral, que significa se tratar de um processo cíclico e recursivo, e que tende a aprimorar a medida que completa novos ciclos. O segundo ponto são os quatro quadrantes do modelo, que significam, as “arenas” dos debates, cada uma com suas competências, linguajar e particularidades (VOGT e MORALES, 2017).

Tomando, por exemplo, um tema científico qualquer, é no primeiro quadrante que se dá a produção e difusão da ciência entre seus pares, ou seja os próprios cientistas são destinadores e destinatários da ciência. Isto acontece dentro da própria instituição científica, eventos científicos (congressos, seminários, etc) e publicações científicas (idem).

Fonte – VOGT e MORALES (2017)

No segundo quadrante, ensino de ciência e formação de cientistas é onde cientistas e professores são os destinadores a todos os níveis de estudantes destinatários. Isto pode acontecer dentro da própria instituição científica na relação entre bolsistas, estudantes e seus coordenadores e orientadores, e em universidades e escolas de formação científica, entre professores e alunos (idem).

No terceiro quadrante encontramos o ensino para ciência, momento em que professores, cientistas e administradores de museus de ciência destinam ciência a estudantes e público jovem. Sala de aula, livros didáticos e espaços como museus e exposições compõem esta arena (idem).

A divulgação científica se encontra no quarto quadrante, onde jornalistas especializados, professores e cientistas destinam informação científica para a sociedade em geral, em nichos específicos ou de forma abrangente. Basicamente qualquer espaço pode ser usado para este processo de popularização da ciência. É uma apropriação do divulgador científico de meios existentes e disponíveis (idem). 

Apesar do quarto quadrante indicar ser a divulgação científica, é importante compreender que ela se dá nos quatro quadrantes, em diferentes níveis de profundidade, limitadas pelas competências e particularidades dos seus atores emissores e receptores. E é ai que está a beleza do processo, uma dinâmica virtuosa, que retroalimenta através de todos os quadrantes, através da comunicação e ressignificação de seus conteúdos, potencializando de forma recursiva o tema científico que esteja em questão.

No modelo da espiral da cultura científica podemos perceber este fluxo, o conhecimento científico fluindo no sentido horário e sua interpretação e reflexão fluindo no sentido anti horário. Isto consolida um modelo caórdico que permite situações interessantes e inusitadas, como por exemplo, a possibilidade de um questionamento ou a leitura de um receptor no quarto quadrante resultar numa incrível descoberta científica. Se juntarmos a serendipidade do evento com o possível adjacente esta é uma hipótese bem plausível, a depender apenas da eficiência do sistema de comunicação.

Algumas características deste sistema de comunicação estão representadas nos eixos dos quadrantes. O primeiro e o segundo quadrante, na parte inferior do eixo horizontal possuem uma comunicação “Esotérica”, ou seja reservada a grupos restritos, pela forma e conteúdo de suas mensagens. Já os terceiros e quarto quadrantes fazem uso de uma comunicação “Exotérica”, uma comunicação ampla, aberta e irrestrita. Percebe-se o quanto é importante adequar a comunicação ao público alvo (VOGT e MORALES, 2017).

Outro detalhe interessante está relacionado ao eixo vertical, do lado direito, onde situam-se o 1º e o 4º quadrantes temos um discurso polissêmico e polifônico, onde várias vozes se pronunciam de forma concomitante, é o discurso do debate e da conversa. No lado esquerdo, onde situam-se o 2º e 3º quadrantes, temos um discurso monossêmico e monofônico, onde um numero pequeno de emissores falam para um grupo de receptores, uma das características das aulas expositivas (idem).

E interessante observar que os discursos polissêmico e monossêmico não são características exclusivas, mas dominantes em seus quadrantes. Podemos ter um discurso polissêmico em uma sala de aula invertida, e um discurso monossêmico em temas muito delicados ou complexos, onde o debate pode ser desmotivado.

O interessante disto tudo, para este projeto de divulgação científica, é a aplicação da espiral da cultura científica, no sentido de compreender os públicos alvo, e ajustar a comunicação. Considerando inclusive e principalmente o engajamento, fomentando o debate e motivando-os a buscar e requisitar mais informações pertinentes a este projeto, cujo tema visa elucidar a forma como as mediações algorítmicas das redes sociais podem influenciar o indivíduo e a sociedade.

Além dos aspectos descritos com o objetivo de situar o cenário da divulgação cientifica, que serão endereçados em outro momento, há que posicionar a divulgação científica em si, seus objetivos, formato e modelos.

Jorge Wagensberg (2005) ao descrever o conceito de “Museu Total”, destaca que a realidade é construída de objetos e fenômenos. Os objetos são feitos de materiais que formam o espaço, e os fenômenos são as mudanças vivenciadas pelos objetos ao longo do tempo. Para ele, um bom museu, ou uma boa exposição, é aquela em que o visitante acaba saindo com mais perguntas do que entrou

O que importa é se uma exposição estimula as pessoas a lerem livros, fazer novas perguntas na sala de aula, fazer escolhas diferentes quando assistem TV, viajar de maneiras diferentes, e acima de qualquer outra coisa, se ela gera conversas, conversas durante a visita mesmo, conversas na primeira refeição em família depois da visita, conversas com a pessoa interior (pensamentos), conversas com a natureza (observação, experimentação).

(WAGENSBERG,2005, p.4)

Ao trazer a proposta de Wagensberg para um projeto de divulgação científica virtual, torna-se necessário tangibilizar objetos através de comparações e descrições, assim como com os fenômenos, possibilitando ao interlocutor, ao menos, imaginar com consistência o que se deseja demonstrar. Percebe-se também a importância de estimular sua curiosidade e interesse na busca de mais conhecimento a respeito do tema, construindo inclusive uma afinidade com o projeto de divulgação científica em questão e seus interlocutores (idem).

Para Wagensberg, o conhecimento científico é parte do objetivo, porem se faz necessário expor também o método, o processo, possibilitando ao interlocutor compreender como foi construído o conhecimento científico em questão. É particularmente estimulante para o interlocutor, que ele venha a se defrontar com novos aspectos da realidade, exatamente por desconhece-los. Invariavelmente a divulgação científica guiada por estas premissas produzirá muita conversa, dado o valor da moeda social que produz, como diz o autor, uma boa medição indireta é a quantidade de conversa que uma visita gera (idem). 

Em algum lugar, algo incrível esta para ser conhecido, frase de Craig Cormick (2019), para ele o divulgador científico deve ter a habilidade e empatia com seu público alvo, a ponto de ajuda-los a encontrar as peças do quebra cabeças que estão faltando, para construir a imagem que se deseja. Nada em ciência tem valor para sociedade se não for adequadamente comunicado, e os cientistas devem compreender sua obrigação social neste processo. Como diz Wagensberg (2005), a inteligibilidade é a expressão mínima do máximo que é compartilhado.


Bibliografia

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CGEE. Percepção Pública da C&T no Brasil – 2019. In: Centro de Gestão e Estudos Estratégicos. 2019. Disponível em: https://www.cgee.org.br/web/percepcao/home

CORMICK, C. The Science of Communicating Science: The Ultimate Guide.: CSIRO Publishing, 2019. ISBN: 978-1486309818.

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HOVORKA, D. S.; PETER, S. How the Future is Done. In: 52nd Hawaii International Conference on System Science. 2019. ISBN: 9780998133126

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VOGT, C.; MORALES, A. P. Espiral, cultura e cultura científica. Com Ciência. 2017. Disponível em: https://www.comciencia.br/espiral-cultura-e-cultura-cientifica/. Acesso em: 05/jan./21.

WAGENSBERG, J. The “total” museum, a tool for social change. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 12, no Suplemento, p. 309–330, 2005.


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